No dia em que pus pra fora o grito
- jamsshit12
- 7 de abr.
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Atualizado: há 5 dias
Autor: Jamerson Soares Revisão e edição: Magno Almeida

E com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais.
Clarice Lispector
"Viado, viado!” Palavra que já foi farpa, já sangrou em mim. Hoje, pousa leve como brisa e não fere. “Me chamar de viado é um elogio, isso não me atinge mais”. Gritei estas palavras, e elas ganharam força ao serem ditas por mim da janela da cozinha, contra o tio, lá nos idos de agosto de 2024. A plenos pulmões, com o corpo carregado: o grito, o grito até a rouquidão. Esperneei tanto que explodi em fogos de artifício — faíscas de cores e mais cores riscando o silêncio do céu da minha casa — de tanto e tanto mais que só um corpo em erupção poderia sustentar. No grito, a raiva, a revolta, as passagens pelas memórias do antes e os lampejos do futuro: esperançar um caminho, ainda que seja pelo fio mínimo de um buraco de agulha.
A cozinha da minha casa fica em cima do teto do quarto do meu tio e da cozinha da minha avó, mãe dele. É uma espécie de cortiço, com duas casas: acima, eu, minha mãe e meu irmão; abaixo, avós, tios, primos — um lar feito de ecos e afetos.
No dia em que os meus gritos tomaram forma, o céu, aqui em Ouro Preto, bairro de Maceió, concentrava-se num azul límpido e profundo, com o sol acariciando as cabeças, tudo manso, sereno, como se houvesse uma praia imensa na rua. Até os gatos brincavam na varanda menos desconfiados e prontos para o bote, e os livros flutuavam na estante, enquanto o começo da tarde traçava o seu rumo.
Foi dentro dessa casa labiríntica, na tarde de mar, aos gritos do tio, que me retornaram as aflitas e catárticas lembranças, pois a dor, também um bálsamo de matéria bruta que pode ser lapidado é caminho para demolir muros e cercas; a dor pode restituir as vozes há muito apagadas pela violência, pela opressão, especialmente quando a divergência se torna um risco em um sistema que apaga vidas como a minha.
O tio: meio bruto, alto, negro, calvo, com um corpo quase em ruínas, a catadura transparecendo uma espécie de ameaça a tudo e a todos, embora pareça sempre pronto para um combate. Homem rígido, silencioso, que punha para fora algumas palavras de ódio, fez com que o tempo parasse: ecoaram em mim as minhas próprias vivências. Enquanto eu ouvia, da janela, parado, às vésperas de um sobressalto, uma luz, que parecia ter som, pousou em um dos seus xingamentos e veio em minha direção, como um arpão, facilmente me estremeceu e me transportou para lugares de memória que, de alguma forma, me bagunçavam e davam força.
Naquele momento, voltei para o passado, lembrei que consegui subverter a dor causada por um coleguinha da escola nas primeiras séries, que me humilhava, ordenando que eu "falasse como um homem" ou que endireitasse meu "caminhar de mulherzinha". Eu, que no auge dos meus dez anos, mal conseguia encontrar uma forma de sorrir, ainda não compreendia o significado dessa violência, embora soubesse que não era diversão, mas talvez o contrário. Fico intrigado em como as memórias pontiagudas de uma infância quase infeliz, facilmente apareceram após as violências do tio. Passam-se os anos, mas o grito opressivo de uma vida, do tio, dos colegas, de tantos outros ainda deságua em mim, correndo por entre pedras.
É inegável a força das lembranças agora, e a todo momento, um bombardeio, como quando aos oito anos de vida, minha mãe me pedia que andasse sem rebolar “para dar menos na cara”, durante o percurso da igreja até a nossa casa. Eu era evangélico. Infância e adolescência silenciadas. Eu não conseguia me defender de nada e no meio do furacão: as ordens, os comandos, a bíblia, o Deus recriado pelos homens de terno que tão bem esbravejavam ódio em forma de libertação. Mas, felizmente, as águas que deságuam nas pedras, também são águas que limpam, lavam, lapidam, me fazendo enxergar que o que me estremeceu durante a vida, formado por muitos cacos, finalmente começou a se realinhar no dia em que meu grito, enfim liberto, incendiou o silêncio.
Meu tio, típico homem comum que carrega em si muitos problemas de aceitação, acostumado a beber em excesso, acredita ser o dono de tudo. No dia do grito, ouvi um barulho de alguém batendo nas paredes com agressividade, estatelando os cômodos e muitos grunhidos, como um animal querendo destroçar as presas. Eu não queria me intrometer, pois eu e ele já tivemos grandes embates, como no dia em que ele quebrou tudo dentro de casa e lançou um objeto que quase atingiu o rosto da minha mãe. Mas nada se comparava ao que foi naquele dia terrível. Como sempre fui quieto, sem muita palavra na boca. Então, houve surpresa e eu não me aguentei.
Depois que ouvi o barulho das paredes violentadas, e preocupado com o que ele poderia fazer contra minha avó e a minha mãe, desci as escadas, de forma impositiva, e perguntei o que estava acontecendo.
A sua primeira reação? me chamou de viado, lá da cozinha, com uma faca em mãos.
— O que é viadinho? Tem nada acontecendo aqui não, seu boiola! Vai dar sua bunda, inútil.
Sempre que alguém, na primeira linha de ataque, usa a sexualidade do outro como argumento, é porque não possui mais palavras ou recorre ao que encontra de mais fácil para ferir. Ou talvez, sem perceber, se veja refletido naquele lugar de ódio. Quase fui até ele, com o sangue fervendo, as veias do pescoço pulsando de raiva — ali, eu cresci e mesmo que minha mãe tenha me impedido de algo ainda maior, e embora eu tenha me contido, por instantes, eu cresci. Ali, eu nunca me vi tão grande. Apesar da minha mãe nos atravessando, a briga foi tomando forma. Não fiquei calado. A raiva, em brasa viva, me ajudou a encontrar verdades que há muito ardiam na garganta. E então, aos gritos, elas finalmente foram ditas.
E os xingamentos continuaram durante horas, e eu, pela primeira vez, enfrentei não apenas alguém cheio de ódio, mas o meu tio, que também representava todos os outros que me humilharam desde a infância. Minha mãe pediu que eu subisse para o quarto, o que acabei fazendo, pois a minha avó já estava com a pressão nas alturas, implorando para que parássemos de brigar e foi aí que bradei, da janela da cozinha, como um Dom Quixote no meio de uma guerra, que transformou seu coração movediço em combustível. Bradei e os vizinhos acompanharam a discussão, mas não se manifestaram, sequer chamaram a polícia. Bradei e repetia: “me chamar de viado é um elogio, isso não me atinge mais.”
A repetição me condicionou à liberdade.
Quanto mais vou me conhecendo, mais percebo que as lembranças estão emaranhadas em mim, feito teia de aranha. Tudo vai se ajustando e, então, o longo caminho de viver vai se clareando. Viver, afinal, só se aprende vivendo e sobrevivendo. Relatar tudo isso aqui me coloca em um estado de nuvem em chamas, feito um poeta com asa de fogo. Agora, fortificado de alguma forma, me conduzo às lembranças do início de 2024, quando outro episódio me pôs em um lugar de desassossego e coragem, fez-me entender que eu precisava despertar algum senso de reação — mesmo que essa reação surgisse como um espasmo, uma palavra dita ou escrita.
Em um dia corriqueiro, acesso um aplicativo de relacionamento e esbarro com Pedro, 35 anos, professor no Rio de Janeiro, mas de férias em Maceió. Seus olhos, de um âmbar intenso, e um sinal perto da barba rala lhe conferiam um charme sereno. Era bonito, com uma conversa envolvente, daquelas de quem sabe se expressar e manifestar desejos com respeito. “Mas que engraçado, encontrei alguém que sabe conversar nesse mar de superficialidades dos aplicativos, onde só se busca corpo e sexo. Quero te conhecer pessoalmente”, recebo pelo chat. Ele estava no bairro da Serraria, mas nos encontramos no Marco dos Corais, à beira do mar, na orla marítima da capital. O mar roncava e a noite, sem muitas estrelas, era cortada pelo ritmo das ondas. Ali, muitos casais — mas não como nós.
Conversamos sobre tudo: os ecos da nossa família, os risos dos amigos, as festas que incendiavam as noites e o calor abrasador do Rio de Janeiro. Falamos do jeito único do carioca, do abraço caloroso dos maceioenses, dos meus trabalhos como jornalista e ator, e dos desafios que ele enfrentava diante da sala de aula, onde o mau comportamento dos alunos apagava as esperanças na profissão. Entre palavras, nossos olhares se entrelaçaram e, na faísca de cada olhar, nasceu o efêmero amor de verão.
Não consegui tocá-lo, nem demonstrar afeto em público, pois o medo me paralisava: o peso dos olhares tortos, o desconforto de certas palavras, a ameaça da violência. Caminhamos pela orla, quase cruzando toda a faixa de areia, embalados pela conversa. A maresia da praia, como um suspiro suave, parecia acalentar o nosso romance, transformando o medo em algo distante, quase irrelevante.
Por volta das 22h, fizemos uma pausa e nos sentamos em um banco de pedra à beira da orla. Ali, com poucos transeuntes, a tranquilidade parecia dominar o espaço. Nos olhamos, freneticamente, como flechas encantadas a rasgarem o ar, como uma cachoeira que deságua no silêncio da noite. O mar parecia nos envolver, mesmo sem estarmos nele. Nos beijamos, nos tocamos, nos abraçamos — ali, diante de tudo e de todos. As línguas se tramavam com a suavidade de um rio que nasce, dançando ao compasso de uma correnteza interna. Quando paramos, ainda entrelaçados, um carro passou em alta velocidade, cortando o poema tecido daquilo que era a noite. Dentro dele, um homem, aos gritos, exalava o veneno do ódio:
— Olha ali o viado, que coisa horrível! — dito com a raiva destilada nas palavras. Paralisei.
Automaticamente, me afastei de Pedro, que naquele momento olhou para o motorista e disse algo que, até hoje, me faz resistir:
— Sim, você está vendo um viado mesmo. Mas não só um — dois. Apesar do seu ódio, ainda estamos aqui!
Com um tom confiante e poderoso, ele falou. E eu sorri. Meus olhos brilharam. O motorista não voltou para confrontar. Me parecia que, sozinho, sua coragem se dissipava. Em grupo, no entanto, talvez se tornasse algo ainda mais monstruoso — como hidras que se alimentam de zombarias e violência.
As palavras de Pedro me atravessaram como um abraço invisível. Depois que ele disse aquilo, voltei meu olhar para ele — mais calmo, reconfortado — e quase chorei. Ali, na simplicidade de sua voz, encontrei alimento para seguir. E seguir de mãos dadas.
“Ainda estamos aqui.”
Essa frase carrega um mundo dentro de si. Significa que podem nos atacar, arrancar nossa honra, zombar de nós, nos ferir com olhares, corroer nossa sanidade, tentar nos apagar. Mas ainda estaremos aqui — de pé, vivendo, caminhando, beijando, subvertendo nossos dias, nossos gritos e nossos fantasmas. Ainda estaremos aqui, vigilantes, cobertos de rocha e escudos divinos. Aqui. Ainda estaremos. Apenas sendo o que se precisa ser: eu, você, nós.
Depois de algumas horas, voltei ao presente — com meu tio ainda me xingando à distância. Mas eu já não estava ali por inteiro. Minha mente flutuava entre tempos e lugares, submersa na maravilha de ainda estar vivo e gritando; de ainda ter a possibilidade de espernear pela própria existência — seja pela raiva, pelo instinto ou pela poesia. De reagir ao inimigo que sempre tentou me rebaixar. Ainda estamos aqui — sem violência, mas em resposta firme ao que insiste em nos apagar. Continuei gritando. E gritando. E gritando. Até que ele ficou sem palavras diante das inúmeras brigas que pousam sobre nossa família.
Minha voz, tantas vezes silenciada, incendiou o que sempre quis nos ver mortos. Depois daquele dia com o tio — do meu grito sobressalente e bravio — e daquele outro, terno, com Pedro, essas duas forças me compondo. Depois de tudo, já não sou mais o mesmo. Permaneço aqui, com os olhos incendiados de mundo, o coração em chamas de coragem — e a voz, enfim, liberta do silêncio. Não consigo mais calar.


*O projeto é realizado com recursos da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), do Governo Federal, através do Ministério da Cultura (Minc), operacionalizado pelo Governo de Alagoas, por meio da Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa (Secult).

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